quarta-feira, 21 de maio de 2008

7º. dia

E, ao Sétimo dia, descansámos em Santiago.

Tomámos o pequeno almoço com o Gerhard, tal como tínhamos combinado na véspera, voltámos a trocar endereços, números de telefones e de telemóveis, e marcámos encontro para a Catedral.

À saída do albergue, o José Manuel ofertou-nos dois mapas dos Caminhos de Santiago, e só nos não deu um jogo do Caminho de Santiago porque não tinha perguntas que associassem Portugal ou os portugueses a Santiago…


O João Maciel fez a leitura

À hora de entrar na carrinha fizemos a última oração e a última leitura, que foi escolhida e lida pelo João Maciel:

Carta aos Hebreus, 12, 14-29:

“Procurai a paz com todos e a santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor. Na verdade, não vos aproximastes de nenhuma realidade palpável, de fogo ardente, das trevas, da obscuridade ou da tempestade, nem do som da trombeta ou do ruído das palavras…”.

Mais palavras para quê? Mais que da realidade palpável, Santiago é foco de irradiação da outra realidade, da que existe e não se vê, mas que é muito mais real e perene do que a primeira. É foco de irradiação de Paz e da Santidade que devemos procurar, alimentar e difundir, e sem as quais ninguém verá O Senhor!

Fizemos a nossa última oração da manhã e entoámos os últimos cânticos ao som da flauta mágica da Mariana.

O dia foi reservado à Missa do peregrino – 12 horas – a compras e ao almoço, que decorreu no McDonald’s por escolha dos mais jovens. Sim, daqueles que são menos velhos…

Não voltámos a encontrar o Gerhard.

Voltámos a a encontrar o Luís...

Ainda voltámos a encontrar amigos,

fizemos compras e a Sofia fez negócio com o eterno candidato a médico, veterano das lides académicas do Obradoiro...

A Sofia a negociar...

Despedimo-nos das procissões e da cidade.

Despedimo-nos da cidade e de suas procissões

Dissemos um último adeus a Santiago.

O regresso foi já de saudade, e o cansaço daqueles dias misturou-se com a nostalgia do Caminho...

À chegada, junto à igreja de Aldoar, uma última leitura da Carta aos Efésios, 4, 25-32 – Vida exemplar:

“Nenhuma palavra desagradável saia da vossa boca, mas apenas a que for boa, que edifique, sempre que necessário, para que seja uma graça para aqueles que a escutam. E não ofendais o Espírito Santo de Deus, selo com o qual fostes marcados para o dia da Redenção.

Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade. Sede, antes, bondosos uns para com os outros, compassivos; perdoai-vos mutuamente, como também Deus vos perdoou em Cristo.”

Sequência admirável!...

Agradecemos a Graça daqueles dias na Missa celebrada às 19 horas.
O regresso a Aldoar

Entretanto, o Caminho continua…

Bom Caminho, Amigos!

ULTREIA!!!

SUSEIA!!!

Porto, 30 de Março de 2008

6º. dia

Esperam-nos os últimos 18 quilómetros. Já cheira a Santiago. A chuva deixou-nos, o sol já espreita. O que não nos deixou foram as subidas que não tínhamos adivinhado no relevo cuidadosamente observado na Net!... E algumas eram mesmo martirizantes!

Na leitura deste dia saiu a passagem da 2ª. Carta de S. Pedro, 3-11:

“O divino poder… concedeu-nos todas as coisas que contribuem para a vida e a piedade.

Por este motivo é que, da vossa parte, deveis pôr todo o empenho em juntar à vossa fé a virtude, à virtude o conhecimento, ao conhecimento a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, à piedade o amor aos irmãos; e ao amor aos irmãos a caridade.

Se tiverdes estas virtudes e elas forem crescendo em vós, não ficareis inactivos nem estéreis, relativamente ao conhecimento de Nosso senhor Jesus Cristo.
…”
Até aqui lêramos anúncios de dificuldades e promessas de protecção. Agora é a afirmação da concessão de dons suficientes para a progressão no caminho do aperfeiçoamento e da Fé. São ensinamentos de como agir para atingir a perfeição e a meta, que são as portas abertas de par em par do Reino de Deus.

já temos, mas teremos de lhe juntar a virtude…o conhecimento…a temperança…a paciência…a piedade…o amor…a caridade, tudo em crescendo, caminhando para maior perfeição e realização pessoal.

A última paragem

Antes do Monte do Gozo fizemos uma última paragem no alto de uma encosta que se desbobina primeiro por entre loureiros e carvalhos em subidas acentuadas, e, depois, por entre tojos e pinheiros. O caminho torna-se mais rústico e despido, a paisagem menos verdejante, própria de monte. Foi aqui que a Sofia foi contemplada com uma singela coroa de silva, a lembrar que “não há amoras sem espinhos”, e que as boas conquistas também têm os seus custos.

Não há amoras sem espinhos...

Passam ciclistas a caminho de Santiago. E passa uma airosa moça em sentido contrário. Fiz-lhe sinal de boleia ao contrário, indicando que Santiago não era para ali.

Respondeu que “É outro o méu caminho!...”.

Caminhos… Sim, cada qual tem o seu, o que importa é descobrir qual é.

Pouco adiante deparámos com a “rede das cruzes”: entretecidas na malha da rede que separa o caminho da estrada estão centenas de cruzes de todos os tamanhos que os peregrinos vão colocando à medida que chegam. Também lá deixámos as nossas, pequeninas…sob a vigilância de Santiago, representado no marco que, pouco abaixo, indica estar próxima a cidade do Apóstolo.

Deixámos também lá as nossas...

Mas ainda nos aguardava a singela vista de uma família completa que, de bicicleta, enfrentava as últimas subidas: o pai, que rebocava o carrinho com a filhota de uns dois anitos, a mãe e o filho mais velho, de uns sete e que, garbosa e confiantemente ora seguia ora antecedia os progenitores na sua mini roda 20!...


Peregrino grande

Pusemos o último carimbo do Caminho na capela de S. Marcos e, por opção do grupo, não atravessámos o albergue mas contornámo-lo, descendo para a cidade.


A capela de São Marcos

Fomos tirando “bonecos” e andando. Já estavam esquecidos os momentos de dificuldade, nem o João C. se lembrava das queixas do seu joelho (esquerdo ou direito, João?), nem o Fábio da falta dos ténis, nem eu do telemóvel.

Com a bênção de João Paulo II

Timidamente, o sol apareceu

E, finalmente, o sol começava a espreitar!

No centro de Santiago

Na chegada à Praça do Obradoiro fomos recebidos pelo disparar de flashes por parte daqueles que vêm de carro e que não resistem a fixar a lembrança dos grupos que vão vendo chegar.

Entrando na Praça do Obradoiro

Saltámos, abraçámo-nos, cantámos…

A Catedral...

Alegria e emoção

Fizemos a nossa última roda… rezámos… e ali ficámos um pouco, colados ao chão, comovidos, retendo lágrimas teimosas, e enterrando definitivamente todos os nossos trabalhos do Caminho. Mas apenas os daquele porque o verdadeiro Caminho começava nesse momento. Um termina ao chegar, o outro inicia-se ao partir.

A última roda

Os nossos bordões do Caminho, apontando para a concha, indicam a nossa união, indicam a chegada, mas a parte exterior, apontando em todas as direcções, indicam a partida, o sentido de todos os pontos cardeais para onde deve seguir a nossa Mensagem .

As direcções da Mensagem

À entrada do albergue aguardava-nos a última surpresa: quando nos dirigíamos à recepção vislumbrámos por uma porta entreaberta, ao fundo da sala de refeições, nada menos que o Gerhard!... Sim, o Gerhard, que encontrámos o ano passado na primeira etapa, vínhamos desta vez encontrá-lo depois de terminada a última!...

Ficou como nós: pasmado e admirado! Não era para menos.

Trocámos cumprimentos, informações, e combinámos encontro para o dia seguinte, ao pequeno-almoço.

Tinha passado a tarde, passou a noite e veio a manhã: foi o sexto dia.

5º. dia


Com promessas de melhoria nas últimas leituras, esperançados, com o Fábio calçado de novo, mais uma vez escorraçados do albergue, preparámo-nos para outra etapa, rumo a Pedrouzo.

Coube desta vez ao J. Cunha abrir “o livrinho” e ler Actos, 20, 1-6:

“…Estes partiram à frente e esperaram-nos em Tróade.”.

“Estes” eram sete, o que perfaria o número de oito com Paulo.

Quem de nós oito foram os sete que partiram à frente para se encontrar com o último em Tróade?

Distávamos de Pedrouzo (Pino) apenas 18 Km, que era a distância que prevíamos percorrer naquele dia.

A chuva abrandou e a tempo mostrou melhorias. O trajecto continuou por entre zonas verdes e povoados minúsculos e, a espaços, começaram a aparecer construções e propriedades mais bem cuidadas. Adivinhava-se a proximidade de Santiago.

Suíça e Polónia unidas.

Reencontrámos os amigos (um do outro...) de Zurique e Vadovice, e um grupo de Guimarães (Ronfe) que vinha do Caminho primitivo francês. Com eles vinha o Luís, um moço que peregrina por missão e que foi o ano passado de Braga a Roma a pé. Durante quatro meses percorreu caminhos, parou a colher morangos no percurso para angariar dinheiro para o seu sustento. Nesses quatro meses apenas gastou €350,00!...

O Luís.

Em sentido contrário cruzámos com um seu velho conhecido de caminhadas que ia de Santiago talvez para lado nenhum: o Costinha, da Nazaré, que é um sem-abrigo desde que a família se lhe desmantelou. Peregrina quase que por peregrinar. Qual a diferença em dormir na rua parado ou a andar? Assim ao menos vê mundo e alguma coisa retém.

As histórias do Costinha

Enquanto rezávamos o Terço, numa subida, reparámos que, coladinho nas nossas costas, vinha um peregrino que víramos quilómetros atrás. Parecia querer rezar connosco. Convidámo-lo a dirigir uma dezena. Aceitou e rezou o Pai Nosso, depois parou.

- Agora é a Ave Maria, dissemos-lhe.

- Não sei. – Respondeu.

Continuámos e ele sempre colado a acompanhar-nos.

Findas as orações finais perguntou se éramos católicos. À nossa resposta de que sim, frisou.

- Apostólicos?… Romanos?

- Sim.

- Eu sou Evangélico.

- Baptista?

- Pentecostal. De Barcelona.

- Como se chama?

- José.

A Sofia entoou e nós começámos a cantar com ela: “O Senhor é meu Pastor, nada me falta. Faz-me descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes…”

- Salmo 23. – Sussurrou ele.

Quase que maquinalmente anuí.

Bem lá no íntimo deve ter ficado a pensar que, afinal, os católicos também lêem e prezam a Bíblia, cantam os Salmos! Este facto deve tê-lo obrigado a desfazer juízos preconcebidos habitualmente denegridores da nossa imagem.

É certo que a maioria dos católicos não lêem a Bíblia. Mas há católicos que a lêem…

E a conversa continuou sobre o papel do Espírito Santo na Igreja e em cada um, e no de Maria como medianeira na incarnação, como participante na redenção, ponte entre o Céu e a Terra, e agora nossa medianeira no Céu.

A certa altura lembrei-me de disparar a pergunta que era habitual na Sofia:

- O que o traz a Santiago?

- Ver gente, conhecer pessoas. – Disse.

- Mas… para isso pode-se ir à rua, ao futebol, à romaria…

- Sim, mas não é a mesma coisa!

Pois não, de facto não é a mesma coisa, embora às vezes nem tenhamos verdadeira consciência disso, e de que somos guiados por uma mão invisível que nos impele a ir ao encontro da Fonte da Água Viva…

Separámo-nos, cogitando o que é que faz com que pessoas como o José se despeguem ocasionalmente da crença que têm e se aproximem da que os seus antepassados deixaram há muito tempo.

Mais tarde, já no albergue, quando voltou a acercar-se de nós dava gosto ver a curiosidade com que desfolhava o nosso cancioneiro…

O José acompanhou-nos na sobremesa.

O albergue é à entrada da cidade, no alto de uma curta subida. Depois do banho fomos às compras ao mini, ao talho e à padaria. Trouxemos morangos para a sobremesa. Um pequeno mimo. Éramos 8, contei 8 e parei. A Sofia pôs mais dois e disse:

- Eu não gosto de levar a conta certa. É que, às vezes, aparecem mais dois e assim dá para todos.

Parece ser pouco? Mas o certo é que nunca ninguém passou fome e o pouco que adquirimos chegou perfeitamente para as nossas precisões do caminho… Mas também era uma peregrinação, não uma excursão.

Fomos os últimos a servir-nos da cozinha.

Fomos os últimos a servir-nos da cozinha

Os amigos de Guimarães já estavam sentados a comer e nós ainda nos preparativos. Foram muito simpáticos. Deram-nos o resto da carne estufada, um arroz em que não acertaram na cozedura (temos de lhes emprestar a Sofia!), salpicão do Minho, e vinho de quinta! O Sr. Vaz e os demais desdobraram-se em amabilidades connosco.

Os amigos de Ronfe

Já estávamos à mesa quando aparece uma espanhola com um tacho com salada de alface já temperada:

- Nós não conseguimos acabar. Deixamos aqui para vocês!

Recordámos as passagens da leitura do dia 27:

Os nativos trataram-nos com invulgar humanidade.

…durante três dias, nos hospedou da maneira mais cordial.”

Parece que connosco estava a acontecer o mesmo!...

Estávamos à mesa quando aparece o José. Convidámo-lo a sentar-se e a comer connosco. Aceitou sentar-se mas não quis comer. Ficou à nossa frente muito circunspecto. Quisemos que comesse um pouco ao menos do nosso pudim. Aceitou.

O que é que faz com que as pessoas se acerquem de nós? – Perguntei a mim próprio. Parece que temos mel…

Acabado de chegar de "bike"

Às tantas juntou-se-nos um moço que acabava de chegar de bicicleta. É do Porto. Porto FCP e Porto cidade. Com ele vem outro jovem que não quer comer. Sente-se cansado e prefere o descanso ao alimento. Convidámos o recém-chegado e insistimos para que convencesse o companheiro. Não conseguiu. Movimentou-se logo uma delegação de jovens que foi falar com ele. Não o convenceram de imediato mas, pouco depois lá veio ele. Afinal a Sofia ainda não acertara desta vez com a quantidade, por erro ou acinte, não sei, e havia que chegasse e sobrasse. Pena era ter de deitar o resto ao lixo!

No final, o pudim chegou para todos e os 10 morangos tiveram o destino que a Sofia previra…

Massa, pudim, música e morangos

Os mais novos lavaram, arrumaram a louça e limparam a cozinha

Tínhamos arrumado e limpo a cozinha quando vemos passar os amigos de Guimarães, de garrafas na mão, pão e salpicão. O Sr. Vaz espreita para a cozinha e diz:

- Se quiserem acompanhar-nos num copito estamos ali na sala…

Para terminar o dia alguns de nós não deixámos cair o convite e fomos provar o salpicão.

Mas, preparávamo-nos para nos deitar quando apareceu o Luís no cantinho que nos destinaram: um sector de oito beliches, mesmo à nossa medida! Sentámo-nos todos em roda acocorados em dois beliches a ouvir as histórias dos seus percursos, as razões da sua decisão de andar pelos caminhos evangelizando… Da sua caminhada solitária do ano transacto de Braga a Roma em quatro meses e meio com apenas 350 Euros!... Do seu sonho de ir para o ano a pé até Jerusalém… E as histórias dos seus caminhos, que são um só afinal, das vezes em que foi recebido quando precisava e de quando lhe fechavam a porta, sendo necessitado! E de quando descobria que, agradecendo o acolhimento, quem lho fornecia é que terminava agradecido!

Ficaríamos ali até à manhã seguinte não fora o termos de dormir para reiniciar a nossa caminhada! Na verdade, as surpresas continuavam. Apetecia-nos ficar ali esquecidos prolongando aquele serão na clandestinidade dos regulamentos do albergue, recolhendo sofregamente cada experiência daquela vida feita doação, entrega, de alheamento de si e de dedicação aos demais… As pálpebras não pesavam já anunciando o sono, que se espantara na cadência do contar de tantas e tão inusitadas histórias, mas o dia seguinte exigia um pouco de sono para a caminhada do dia seguinte.

Passara a tarde, finda a noite, veio a manhã. Foi o quinto dia.

terça-feira, 20 de maio de 2008

4º. dia

À saída do albergue: união e boa disposição

O dia 27 tinha como destino Árzua, a uma distância de escassos 14 Km. Mas 14 Km que aumentaram… Na véspera o Fábio tinha colocado os ténis a secar no irradiador. De manhã, quando os foi buscar viu que um deles tinha encolhido ao ponto de não o poder calçar!... Teve de se contentar com uns miseráveis chinelos de praia que o faziam esparrinhar lodo a toda a volta!...

O Fábio fez a etapa com aquele "calçado"...

Na oração da manhã a leitura que saiu à sorte foi Paulo em Malta, dos Actos dos Apóstolos, 28, 1-10:

“Depois de salvos é que soubemos que a ilha se chamava Malta. Os nativos trataram-nos com invulgar humanidade, pois acenderam uma grande fogueira, junto à qual nos recolheram a todos, por causa da chuva que estava a cair e por causa do frio.

Nas proximidades daquele sítio, havia umas terras pertencentes ao Primeiro da ilha, que se chamava Púbio, o qual nos recebeu e, durante três dias, nos hospedou da maneira mais cordial.

Eles por sua vez cumularam-no de honras e, na altura da partida, proveram-nos do que era necessário.”

A chuva ainda nos continuava a perseguir impiedosa, mas dava-nos algumas folgas, e o percurso mimoseava-nos com lugares pitorescos e paisagens repousantes.

Sítios e lugares para não esquecer...

Duas ocorrências são dignas de registo: a primeira quando parámos no pátio de uma habitação, que parecia ser uma garagem sem porta, com dois bancos corridos, um de cada lado. A chuva reaparecia e aquele coberto vinha mesmo a calhar. Não vimos ninguém por ali e lá nos acomodámos. Pouco depois sai um homem da casa defronte daquela em que nos encontrávamos, pega num carrinho de mão e reinicia uma tarefa que devia ter interrompido talvez para almoço. Achámos bem justificar a nossa presença não fosse o caso de nos considerarem intrusos abusadores:

- Bôs dias!...

- Boas tardes! – Respondeu.

- Parámos aqui por causa da chuva, não vimos ninguém para pedir…

Nem nos deixou terminar e, continuando a sua azáfama paulatina, retorquiu:

- Peregrino não molesta!...

Esta frase passou daí em diante a ser uma das máximas que recolhemos e fixámos para sempre!

A outra foi quando gabávamos o belo limoeiro carregadinho a uma das raras almas com que topámos no percurso.

- Ah!... São portugueses?

- Somos!

- Eu tenho duas netas casadas com portugueses!

E lá foi matando connosco em curta cavaqueira a saudade que tem das netas, que moram em Portugal mas nem sabe onde…

A Sofia, oportunista, não se contentou com gabar os limões e atreveu-se até a pedir “um”.

À rapina da Sofia respondeu a fartura da dita senhora:

- Tome lá, tire os que quiser! – E estendeu-lhe um balde cheio.

E a Sofia não tirou um mas dois limões. É que o peso conta senão ficaria com o balde!...

Ribadiso

Ao Km 40, transidos e molhados, entrámos num café, a poucos metros de Ribadiso. A proprietária não devia ter músculos do riso, nem o dom do atendimento, nem o de saber vender.

Tivemos de pedir torradas a prestações.

Torradas a prestações...

Enchemos nós a sala de alegria e de música.

A hora da música e canto

A Sofia aproveitou para tentar secar o boné num cepo da lareira. É que a grande fogueira prometida que nos devia aguardar não passava de um monturo de cinza na lareira…

A lareira mortiça não deixou de dar um certo ar de aconchego...

Aproximando-nos da rampa dos 45%!...

Foi um alívio chegar a Árzua!

Foi um alívio a chegada a Árzua: tomámos banho, fomos ao Centro de Saúde vigiar algumas mazelas, e comprar calçado novo (Fábio). Também aqui encontrámos muita simpatia. A Merche e a Jaqueline, que arranjaram na loja um bom par de botas para substituir as danificadas do Fábio, e que gostam de vir a Valença comer bacalhau.

Demos uma volta pela cidade que tem pormenores interessantes, e visitámos a igreja próxima do albergue.

Pormenor de uma Praça: árvores unidas...

O Pe. Santiago pediu que rezássemos por ele, e tentou tirar-nos uma foto mas não ficou grande coisa.

A missão do fotógrafo é outra mas o tempo também não ajudou.

Alguns de nós tivemos a oportunidade de assistir à Missa na bonita igreja confiada ao Pe. Santiago, onde aproveitámos para apor mais um carimbo nas nossas credenciais.

Aguardando o início da celebração.

O momento de carimbar as credenciais.

Lavados, secos, e jantados, recolhemos aos beliches onde dormimos o sono dos anjos.

Finda a tarde, veio a noite, e em seguida a manhã, foi o quarto dia.

3º. dia

A saída do albergue

No dia 26 esperava-nos uma etapa curta de apenas 16 Km. Uma ninharia se não fosse o exagerado peso das mochilas. A minha rondava os 12-13 KG!... O frio que se anunciara cedo assustou-nos e deu nisto!

A epístola aos Romanos, 8, 31, e seguintes, fez com que ultrapassássemos sem queixume os trabalhos do dia, pois que

“… se Deus está por nós, quem está contra nós?

Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?

A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada?

Mas em tudo isso saímos mais que vencedores, graças àquele que nos amou.

Nem as potestades… nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor Nosso.”

Foi uma etapa de vários encontros: um grupo de catalães, duas brasileiras de direito chegadas há um mês a Valladolid vindas do Recife, os espanhóis de Alicante, e as espanholas de um colégio que, na véspera, sensibilizaram o Fábio.

As duas brasileiras do Recife

A partir dali foi a chuva, a espaços, mas generosa. O frio enregelava. Em Carballal apareceu-nos como refúgio o alpendre de um albergue.
Refúgio salvador
Resguardados, cantámos o Pai-Nosso ao som da viola do João e da flauta da Mariana. Dois catalães que passavam juntaram-se a nós e cantaram connosco. Foi um belo momento do nosso Caminho.
Com os dois catalães

Casanova… Porto de Bois… Que odor!... A paisagem é linda mas o cheiro a vaca penetra o ar, enche tudo, e temos de o suportar!... Se as fotos pudessem fixar o cheiro do caminho decerto que iriam em pouco tempo parar ao lixo…

Por aqui a paisagem contrastava com o cheiro a vaca...

Mais adiante, creio que em Leboreiro, e já perto do final da etapa, entrámos num café simpático onde nos recebeu o Ramón e a Fabíola. Vínhamos a pingar por causa da chuva que nos vinha baptizando desde há algum tempo, e o café apareceu na hora exacta em que um copo de leite quentinho caía bem. As temperaturas no exterior também eram baixas. Desde o primeiro dia não deveriam ter subido acima dos seis graus, e, às vezes, deveriam andar mais perto dos quatro que dos seis! Sem se importarem com a água que pingava das coberturas das mochilas mandaram-nos arrumá-las a um canto e atenderam-nos com um sorriso que parecia responder à promessa com que iniciáramos o dia:

“…se Deus está por nós, quem está contra nós?”.

Foi um alívio avistar em Furelos a tal ponte dos quatro olhos (que se só tivesse três levaria a Sofia a reclamar…) que fica já perto de Melide.

A ponte de Furellos

O albergue é pequeno e o cilindro não tinha capacidade para tantos banhos. Por isso, neste dia alguns foram dormir tal qual haviam chegado…

Mas, era dia de polvo à galega em Melide. E ali, quem o cozinha bem, é o Ezequiel. Decidimos dispensar os serviços da Sofia e optar por ementas ao gosto de cada um, tal como nos passeios de dia ou refeição livre.

Uns fomos ao tal polvo, outros ao bifinho.

O polvo é cozido em caldeirão de cobre, onde se mantém à espera dos comensais. À chegada basta parti-lo em pedacinhos, temperá-lo com bastante sal refinado, pimenta, pimentão (colorau), e muito, muito, mesmo muito azeite! Vai com pão a acompanhar, batatas cozidas, tudo regado com verde tinto em tigela. Simples e bom.

A outra mesa estavam os catalães que se dispuseram a tirar-nos a foto em que o polvo era o centro das atenções, nós os actores, e a cozinha o cenário. A intenção foi boa mas o jeito é que era pouco pois as fotos ficaram todas desfocadas!...


Esta é a cozinha; o polvo ainda estava para sair...

Pagámos €8,50 por pessoa. Pena foi não haver caldo galego. Fica para a próxima, se na próxima tiverem caldo galego!

A Sofia queixava-se da garganta. À falta de chá achámos bem pedir para ela uma daquelas bebidas quentinhas que costumam fazer subir a circulação e espantar as febres. Escolheu-se um licor de Santiago, quentinho, que o anfitrião nos serviu em copos de vinho até meio…

Ao lado, os catalães bebiam o mesmo em “dedais” de vidro!...

A Sofia não mais tossiu, nem morreu e, por isso, quando lhe vier a tosse pensa logo em ir outra vez a Santiago para a curar com um copinho…

Bem aviados, ao jantar contentámo-nos com um leite quente.

Ao lado descobrimos a Igreja de Nª. Srª. da Conceição onde ainda se vislumbram restos do que foram pinturas em afresco do Séc. XV. A guia esmerou-se em simpatia.

A igreja de Nª. Srª. da Conceição (exterior)

A igreja de Nª. Srª. da Conceição (interior)

Quando a noite veio mesmo ainda nos entretivemos até tarde mas não sem antes termos terminado aquele dia com mais uns momentos de partilha, de pensamentos, de meditação.

Tinha vindo a tarde, veio a noite, e em seguida a manhã: foi o terceiro dia.