Com promessas de melhoria nas últimas leituras, esperançados, com o Fábio calçado de novo, mais uma vez escorraçados do albergue, preparámo-nos para outra etapa, rumo a Pedrouzo. Coube desta vez ao J. Cunha abrir “o livrinho” e ler Actos, 20, 1-6:
“…Estes partiram à frente e esperaram-nos em Tróade.”.
“Estes” eram sete, o que perfaria o número de oito com Paulo.
Quem de nós oito foram os sete que partiram à frente para se encontrar com o último em Tróade?
Distávamos de Pedrouzo (Pino) apenas 18 Km, que era a distância que prevíamos percorrer naquele dia.
A chuva abrandou e a tempo mostrou melhorias. O trajecto continuou por entre zonas verdes e povoados minúsculos e, a espaços, começaram a aparecer construções e propriedades mais bem cuidadas. Adivinhava-se a proximidade de Santiago.
Suíça e Polónia unidas. Reencontrámos os amigos (um do outro...) de Zurique e Vadovice, e um grupo de Guimarães (Ronfe) que vinha do Caminho primitivo francês. Com eles vinha o Luís, um moço que peregrina por missão e que foi o ano passado de Braga a Roma a pé. Durante quatro meses percorreu caminhos, parou a colher morangos no percurso para angariar dinheiro para o seu sustento. Nesses quatro meses apenas gastou €350,00!...
O Luís.
Em sentido contrário cruzámos com um seu velho conhecido de caminhadas que ia de Santiago talvez para lado nenhum: o Costinha, da Nazaré, que é um sem-abrigo desde que a família se lhe desmantelou. Peregrina quase que por peregrinar. Qual a diferença em dormir na rua parado ou a andar? Assim ao menos vê mundo e alguma coisa retém.
As histórias do Costinha
Enquanto rezávamos o Terço, numa subida, reparámos que, coladinho nas nossas costas, vinha um peregrino que víramos quilómetros atrás. Parecia querer rezar connosco. Convidámo-lo a dirigir uma dezena. Aceitou e rezou o Pai Nosso, depois parou.
- Agora é a Ave Maria, dissemos-lhe.
- Não sei. – Respondeu.
Continuámos e ele sempre colado a acompanhar-nos.
Findas as orações finais perguntou se éramos católicos. À nossa resposta de que sim, frisou.
- Apostólicos?… Romanos?
- Sim.
- Eu sou Evangélico.
- Baptista?
- Pentecostal. De Barcelona.
- Como se chama?
- José.
A Sofia entoou e nós começámos a cantar com ela: “O Senhor é meu Pastor, nada me falta. Faz-me descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes…”
- Salmo 23. – Sussurrou ele.
Quase que maquinalmente anuí.
Bem lá no íntimo deve ter ficado a pensar que, afinal, os católicos também lêem e prezam a Bíblia, cantam os Salmos! Este facto deve tê-lo obrigado a desfazer juízos preconcebidos habitualmente denegridores da nossa imagem.
É certo que a maioria dos católicos não lêem a Bíblia. Mas há católicos que a lêem…
E a conversa continuou sobre o papel do Espírito Santo na Igreja e em cada um, e no de Maria como medianeira na incarnação, como participante na redenção, ponte entre o Céu e a Terra, e agora nossa medianeira no Céu.
A certa altura lembrei-me de disparar a pergunta que era habitual na Sofia:
- O que o traz a Santiago?
- Ver gente, conhecer pessoas. – Disse.
- Mas… para isso pode-se ir à rua, ao futebol, à romaria…
- Sim, mas não é a mesma coisa!
Pois não, de facto não é a mesma coisa, embora às vezes nem tenhamos verdadeira consciência disso, e de que somos guiados por uma mão invisível que nos impele a ir ao encontro da Fonte da Água Viva…
Separámo-nos, cogitando o que é que faz com que pessoas como o José se despeguem ocasionalmente da crença que têm e se aproximem da que os seus antepassados deixaram há muito tempo.
Mais tarde, já no albergue, quando voltou a acercar-se de nós dava gosto ver a curiosidade com que desfolhava o nosso cancioneiro…
O José acompanhou-nos na sobremesa.
O albergue é à entrada da cidade, no alto de uma curta subida. Depois do banho fomos às compras ao mini, ao talho e à padaria. Trouxemos morangos para a sobremesa. Um pequeno mimo. Éramos 8, contei 8 e parei. A Sofia pôs mais dois e disse:
- Eu não gosto de levar a conta certa. É que, às vezes, aparecem mais dois e assim dá para todos.
Parece ser pouco? Mas o certo é que nunca ninguém passou fome e o pouco que adquirimos chegou perfeitamente para as nossas precisões do caminho… Mas também era uma peregrinação, não uma excursão.
Fomos os últimos a servir-nos da cozinha.
Fomos os últimos a servir-nos da cozinha
Os amigos de Guimarães já estavam sentados a comer e nós ainda nos preparativos. Foram muito simpáticos. Deram-nos o resto da carne estufada, um arroz em que não acertaram na cozedura (temos de lhes emprestar a Sofia!), salpicão do Minho, e vinho de quinta! O Sr. Vaz e os demais desdobraram-se em amabilidades connosco.
Os amigos de Ronfe
Já estávamos à mesa quando aparece uma espanhola com um tacho com salada de alface já temperada:
- Nós não conseguimos acabar. Deixamos aqui para vocês!
Recordámos as passagens da leitura do dia 27:
“Os nativos trataram-nos com invulgar humanidade.
…durante três dias, nos hospedou da maneira mais cordial.”
Parece que connosco estava a acontecer o mesmo!...
Estávamos à mesa quando aparece o José. Convidámo-lo a sentar-se e a comer connosco. Aceitou sentar-se mas não quis comer. Ficou à nossa frente muito circunspecto. Quisemos que comesse um pouco ao menos do nosso pudim. Aceitou.
O que é que faz com que as pessoas se acerquem de nós? – Perguntei a mim próprio. Parece que temos mel…
Acabado de chegar de "bike"
Às tantas juntou-se-nos um moço que acabava de chegar de bicicleta. É do Porto. Porto FCP e Porto cidade. Com ele vem outro jovem que não quer comer. Sente-se cansado e prefere o descanso ao alimento. Convidámos o recém-chegado e insistimos para que convencesse o companheiro. Não conseguiu. Movimentou-se logo uma delegação de jovens que foi falar com ele. Não o convenceram de imediato mas, pouco depois lá veio ele. Afinal a Sofia ainda não acertara desta vez com a quantidade, por erro ou acinte, não sei, e havia que chegasse e sobrasse. Pena era ter de deitar o resto ao lixo!
No final, o pudim chegou para todos e os 10 morangos tiveram o destino que a Sofia previra…
Massa, pudim, música e morangos
Os mais novos lavaram, arrumaram a louça e limparam a cozinha
Tínhamos arrumado e limpo a cozinha quando vemos passar os amigos de Guimarães, de garrafas na mão, pão e salpicão. O Sr. Vaz espreita para a cozinha e diz:
- Se quiserem acompanhar-nos num copito estamos ali na sala…
Para terminar o dia alguns de nós não deixámos cair o convite e fomos provar o salpicão.
Mas, preparávamo-nos para nos deitar quando apareceu o Luís no cantinho que nos destinaram: um sector de oito beliches, mesmo à nossa medida! Sentámo-nos todos em roda acocorados em dois beliches a ouvir as histórias dos seus percursos, as razões da sua decisão de andar pelos caminhos evangelizando… Da sua caminhada solitária do ano transacto de Braga a Roma em quatro meses e meio com apenas 350 Euros!... Do seu sonho de ir para o ano a pé até Jerusalém… E as histórias dos seus caminhos, que são um só afinal, das vezes em que foi recebido quando precisava e de quando lhe fechavam a porta, sendo necessitado! E de quando descobria que, agradecendo o acolhimento, quem lho fornecia é que terminava agradecido!
Ficaríamos ali até à manhã seguinte não fora o termos de dormir para reiniciar a nossa caminhada! Na verdade, as surpresas continuavam. Apetecia-nos ficar ali esquecidos prolongando aquele serão na clandestinidade dos regulamentos do albergue, recolhendo sofregamente cada experiência daquela vida feita doação, entrega, de alheamento de si e de dedicação aos demais… As pálpebras não pesavam já anunciando o sono, que se espantara na cadência do contar de tantas e tão inusitadas histórias, mas o dia seguinte exigia um pouco de sono para a caminhada do dia seguinte.
Passara a tarde, finda a noite, veio a manhã. Foi o quinto dia.